Selected a language:

Hinduísmo: A sabedoria vinda diretamente da Índia

Na civilização hindu há algo que a sociedade ocidental medieval poderia talvez compartilhar, mas que foge completamente dos esquemas e critérios da sociedade ocidental contemporânea: é a veneração e a devoção com que a Índia , unanimemente , cerca os sábios , os homens e mulheres que em vida ascendem à suprema Libertação - consciência do Despertar e da Eternidade.

No ocidente , os modelos que elevamos às nuvens e com os quais procuramos febrilmente identificar-nos são imagens de poder, de glória, de avidez: estrelas de espetáculos, vedetes políticas, milionários, playboys internacionais, superespiões. Trata-se de valores puramente exteriores, teatrais, quantitativos, mensuráveis em curvas de popularidade, em números de bens, de títulos, de conquistas amorosas.

O sábio e o santo quase desapareceram de nossa cultura como modelos, ao passo que representam infinitamente mais aos olhos da maioria das crianças hindus, que um ministro, um astro de rock ou um ator célebre. Aliás, vêem-se comumente dirigentes políticos e poderosos desse mundo prosternarem-se aos pés de um desses "libertados-vivos" (Jivan-Mukta), considerados, às vezes, como verdadeiras encarnações divinas - como foi o caso da santa bengali Mâ Ananda Mayî, falecida em 1982.

As pessoas diante das quais se vem tocar o solo com a testa não tem nenhum título, nenhuma função honorífica, nada que as distinga, à primeira vista, de milhões de outras. Não dirigem nenhuma igreja oficial, nenhuma seita, não tomam parte de nenhuma ação social, não detêm nenhum recorde, não executaram nenhum feito excepcional - tangível, verificável.

Não são guias nem oradores, e no entanto atraem massas consideráveis, milhões de homens e mulheres que vêm, simplesmente, receber o darsham, isto é, simultaneamente, a visão, a graça e a benção do sábio ou do santo.

No ocidente compreendemos facilmente o fervor inspirado por um João Paulo II, um Martin Luther King ou um Gandhi que se engajaram em lutas, que se empenharam pessoalmente, encarnaram um ideal. Compreendemos também o efeito carismático deste ou daquele pregador.

O prestígio incontestado de um Ramana Maharshi, porém, nos parece bem mais misterioso. É um homem que nada fez de especial (alguns anos de recolhimento e isolamento não tem nada de original na Índia), que falou pouco e pouco escreveu, e cuja existência, vista de fora, parece insignificante e monótona.

Ora, esse homem simples, inteiramente desprovido de qualquer ambição ou pretensão e que, de resto, jamais fez alguma coisa para estimular ou desencorajar o ardor de seus discípulos, tornou-se, por si só, objeto de culto e peregrinação consideráveis. Em seu caso não houve visão celeste, revelação divina ou um rosário de milagres: somente uma presença inesquecível, um olhar, um sorriso, uma evidência de ser que também pode ser chamada de plenitude, amor, eternidade.

De fato, o Ocidente sempre esperou, de seus mestres do pensamento, receitas absolutas, respostas definitivas, a equação última que permitiria tudo entender e tudo explicar - como a criança espera de sua mãe a mamadeira salvadora.

Enquanto nossos filósofos nos abastecerem com sistemas apetitosos, nos saciarem com teorias excitantes, brilhantes, nós nos deixaremos encantar e até mesmo hipnotizar. O que o filósofo é, sua vida e seu modo de ser, pouco nos interessa. Que ele seja um homem psicológica e nervosamente abatido, a arrastar uma existência em contradição com seus próprios princípios, isso não nos atinge absolutamente.

Para nós, os problemas pessoais de um Kant, um Hegel, um Bergson ou um Sartre estão fora de questão. O que desejamos é um truque, o truque que nos permitirá agarrar, fixar, aprisionar a verdade, definitivamente. Pouco importa QUEM nos ensina o truque, se Jeová, Lúcifer , O Grande Mantu, Freud, um palhaço, ou a samaritana.

O Oriente sabe, há milhões de anos, que não há resposta absoluta formulável, que a verdade não pode ser aprisionada em conceitos ou apreendida intelectualmente, mas sim vivida, realizada, percebida através de uma experiência interior direta, implicando uma transformação radical do nosso modo de consciência habitual.

A verdade não é uma questão de idéia: ela pertence ao domínio do ser e da experiência vivida.

Portanto, na Índia, é essa uma questão de transformação interior e de realização pessoal que se sobrepõe a tudo. UM libertado-vivo (Jivan-Mukta) é alguém que REALIZOU. Sua eloquência, sua habilidade intelectual, seu nível de conhecimento e de cultura são absolutamente secundários.

Sabe-se que as palavras e os conceitos são apenas sinalizações a indicar o caminho, mostrando um mapa mais ou menos preciso e detalhado: cada um deve, em seguida, explorar o território e descobrir o tesouro. "A palavra é um dedo que aponta para a lua", diz um provérbio zen; "só os imbecis é que olham para o dedo".

Como não pode ser traduzido em imagens e esquemas, nem reduzido a formas mentais, o essencial brota de uma experiência íntima, só comunicável por aquela espécie de certeza ou evidência que se impõe no contato com os seres transformados - os libertados ou despertos.

Mistura de simplicidade, de transparência, de não-dependência e de disponibilidade, de extrema espontaneidade mas também de contínuo deslumbramento, tal é a impressão global da maioria dos testemunhos, mais inesquecíveis que discursos ou tratados geniais.

É preciso salientar que essa realização não é, em absoluto, uma busca de originalidade ou de afirmação pessoal, não está a serviço de nenhum ideal, por mais sublime que seja. Não se trata de procurar uma vantagem qualquer, um paraíso, mas de perder nossas limitações, nossa ignorância, e dissipar as projeções mentais que nos ocultam o esplendor do Real, impedindo-nos de aderir ao instante eterno, aqui e agora, e que obscurecem a felicidade da nossa imutável e verdadeira natureza.

De certa forma , o pesquisador espiritual da Índia está bastante próximo do pesquisador científico. Ambos têm em comum a experimentação. A diferença é que o campo de experimentação do pesquisador científico pertence ao mundo exterior, ao passo que o pesquisador espiritual é, ao mesmo tempo, o pesquisador e seu próprio campo de experimento. Em ambos os casos, porém, a verificação é direta e a certeza vivida, demonstrada, excede consideravelmente as proposições teóricas.

A confiança ilimitada que o discípulo deposita em seu guru (e que é uma condição para o sucesso) não tem nada de fanatismo ou de fé cega. É bastante comparável, efetivamente, ao tipo de relação que se estabelece entre o estudante e seu professor de física ou de química: enquanto ele próprio não realiza a experiência, o estudante não tem nenhuma prova real de sua validez. É obrigado a acreditar em falas alheias e relatos de segunda mão.

De uma maneira mais geral, não pensamos em questionar as afirmações e as capacidades de nossos técnicos e especialistas, pois não estamos absolutamente qualificados para avaliar a autenticidade de sua competência. Desse ponto de vista, o domínio científico e técnico é provavelmente aquele que apresenta no Ocidente, por exigências comuns de realizações concretas, um maior número de pontos comuns com a filiação tradicional da espiritualidade hindu.

No decorrer do tempo, a Índia apresentou inúmeras técnicas de transformação interior , adaptáveis a todas as formas de sensibilidade, a todos os tipos de desenvolvimento e compreensão: físico, emocional, intelectual, ativo ou contemplativo. No centro de uma disparidade às vezes desconcertante, essas práticas têm, todas, um fundo comum, que dividem, aliás, com todas as grandes tradições - taoísmo, budismo, sabedoria de Sócrates e de Epicteto, místicos mulçumanos e cristãos: ser livre é libertar-se do que foi adquirido, de toda posse, de todo apego, de todo haver, não somente no domínio material mas também em planos mais sutis, emocionais, culturais, intelectuais - preconceitos, paixões, opiniões.

Essa entrega, esse abandono à vontade divina, é uma profunda adesão à espontaneidade, à indizível mobilidade do real, uma vigilante presença na eterna transparência do instante atual. É acompanhada por uma desaparição do sentimento do ego - angústia do isolamento e da separatividade -, aquilo que a tradição cristã denomina "morte do Homem Velho" ou, às vezes, "segundo nascimento".

Para os que viveram essa transformação e realizaram esse despertar, o novo estado aparece como extremamente simples, natural, evidente, trazendo menos soluções e respostas definitivas que um desaparecimento das perguntas. É, mais ou menos, como uma cura após longa doença povoada de febres e pesadelos. O Buda mesmo, aliás, apresentava-se não como filósofo ou profeta, mas como um médico capaz de curar o sofrimento. "Vim apenas para ensinar duas coisas: as causas do sofrimento e os meios de suprimi-lo".

No fundo, o que a tradição hinduísta propõe é a procura mais rigorosa, mais científica e, às vezes, mais heróica da felicidade - uma felicidade sem contrários, uma felicidade sinônimo do absoluto.

Por Patrick Ravignant, em A Sabedoria da Índia - Coleção Oriente Secreto - Ed. Martins Fontes.
 

Outras notícias

Comentários

    Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar.

Deixe seu comentário

Obrigado! Seu comentário foi enviado

Oops! Algo de errado aconteceu ao enviar seu comentário :(

Destaque do youtube:

Escolha o Idioma: