Até hoje, muita gente gosta de pensar que o encantamento amoroso acontece por acaso e de modo mágico (como se fôssemos mesmo vítimas das flechadas aleatórias do Cupido). Não é o que acredito.
Desde 1976 venho tentando entender quais as variáveis que determinam a escolha dos parceiros sentimentais. A tarefa é difícil porque está relacionada com múltiplas variáveis e isso costuma ser motivo para que algumas pessoas privilegiem uma delas e desconsiderem outras igualmente importantes.
Penso que existem pelo menos três ingredientes muito relevantes na escolha sentimental: o fato daquela pessoa despertar algum tipo de entusiasmo erótico, a presença nela de alguns ingredientes particularmente agradáveis para o que se encanta e também um aspecto claramente racional relacionado com a admiração.
Cada um desses elementos tem seu peso e, de alguma forma, todos participam do fenômeno, aparentemente mágico, que faz com que uma pessoa neutra se transforme, em pouco tempo, em alguém essencial e único, longe de quem parece impossível imaginar a continuidade da vida.
Muitos são os que privilegiam, mais que tudo o ingrediente erótico: quando um homem sente um forte desejo sexual por uma mulher, costuma confundir isso com amor – até porque em nossa cultura ainda prevalece a ideia freudiana de que “todo amor é sexual”.
Quando uma mulher se sente fortemente excitada ao se perceber desejada por um dado homem também costuma atribuir isso ao fato dele poder ser o tão esperado “príncipe”.
O desejo sexual nem sempre é um bom conselheiro, visto que ele muito frequentemente se manifesta como consequência de uma forma mais exibicionista com que certas mulheres se apresentam socialmente ou da maneira mais agressiva e direta de expressão do desejo por parte dos homens mais ousados e, por vezes, impertinentes.
Sem desprezar sua importância, penso que o entusiasmo sexual deve ser avaliado com cautela e à luz dos outros ingredientes.
Os aspectos menos específicos e que são, juntamente com o sexo, capazes de despertar entusiasmos sentimentais quase imediatos – amor à primeira vista – estão relacionados com peculiaridades daquela dada pessoa e que entusiasmam a alguns e não obrigatoriamente a outros: o timbre de voz, o jeito de andar, o sorriso, a maneira de se apresentar socialmente, a delicadeza dos gestos, além de alguns aspectos da aparência física e que podem lembrar pessoas relevantes do passado daquele que irá se encantar. A esse conjunto, costumo chamar de “fator x”, algo indefinido e muito personalizado. “O fator x” nos influencia bem mais do que costumamos pensar.
O terceiro componente relacionado com o surgimento do encantamento amoroso tem a ver com a admiração, aspecto racional e que deriva dos critérios de valor de cada pessoa e também de sua autoestima. Pessoas com baixa autoestima tendem a admirar aqueles que são seus opostos – os tímidos admiram os extrovertidos, os mansos valorizam os mais agressivos… Se levarmos em conta apenas esse aspecto da questão, fica claro porque tendem a ser frequentes os encantamentos entre pessoas diferentes, em geral diametralmente opostas. Fica clara também a tendência à repetição, ou seja, à escolha de sucessivos parceiros com características semelhantes – e nem sempre as que melhor combinam com aquele que escolhe.
Aquelas pessoas portadoras de boa autoestima e mais corajosas tendem a se encantar por criaturas mais parecidas consigo mesmas. Digo que a coragem é peça essencial nesse processo porque o encantamento entre pessoas com mais afinidades tende a ser mais intenso, determinando uma sensação de iminência de fusão, algo que aparece como muito ameaçador. Surge uma dependência muito forte, associada a um enorme medo de sofrimento em caso de ruptura. Surge também uma grande sensação de ameaça à individualidade, como se os amantes fossem mesmo se “fundir” e se transformar em “uma só carne”. Surge um terceiro medo, relacionado com a própria sensação de felicidade, como se ela atraísse “más vibrações” vindas das pessoas não tão satisfeitas sentimentalmente. O medo transborda as fronteiras do razoável e aparece consubstanciado em algumas expressões que usamos correntemente: “isso está bom demais”! “Estou morrendo de felicidade”! O tema é muito importante e certamente voltaremos a ele.
É importante registrar também que nossa cultura sempre privilegiou a escolha de parceiros complementares, tipo “a tampa e a panela”, de modo que a aliança entre pessoas muito semelhantes ainda é vista como inadequada e tediosa por muitos dos defensores das formas mais tradicionais de encantamento amoroso. Isso porque não existem muitas divergências, atritos ou brigas, o que pode parecer, para alguns, motivo de desgosto. A verdade é que a maioria dos casais se desentende sempre pelos mesmos motivos e as brigas sim é que são monótonas e repetitivas.
Penso assim: a vida em comum é chata e tediosa quando as pessoas que se casam são chatas e tediosas!
Fonte: Flavio Gikovate, Médico-psiquiatra, psicoterapeuta, conferencista e escritor. Atualmente apresentando o programa “No Divã do Gikovate”, na rádio CBN, e dedicando a maior parte do tempo à clínica.
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