Nos imemoráveis tempos pré-internet, era muito difícil se fazer ouvir. Havia poucas opções para um cidadão comum dar seu recado. Publicar um livro ou um pequeno jornal tinha um custo muito grande. Que dirá, então, fazer um programa de rádio ou televisão. Essa distância começou a deixar de existir com a internet. Hoje, com 83,4 milhões de brasileiros com acesso à rede, segundo a Ibope Nielsen Online, e 2 bilhões de pessoas no mundo, conforme a ONU, cada vez mais gente pode publicar e fazer circular a informação.
Hoje podemos escrever sobre o assunto que quisermos e deixar nosso texto disponível para o mundo. Com um pouco de paciência e dedicação, podemos até fazer um pequeno programa de rádio. "Não precisamos mais pedir ajuda ou permissão a profissionais para dizer as coisas em público", escreve o jornalista americano Clay Shirky em seu livro A Cultura da Participação (Ed. Zahar).
E há uma infinidade de ferramentas que confirmam isso. Nas redes sociais existe, em geral, a liberdade para comentar o que se bem entender. Do jogo do seu time ao capítulo da novela, hoje temos os meios de falar e até de ter quem nos ouça. O que antes ficava confinado à mesa do bar ou ao jantar de família, hoje pode ganhar ressonância em escala mundial.
A maioria de nós usa essa nova liberdade para comentar o que é do nosso interesse imediato: nossos músicos favoritos, algo que nos aconteceu, reclamar do tempo. Mas há quem veja nessas ferramentas uma maneira de melhorar a vida de todos.
Fome na escola
Martha Payne, 8 anos, estudante escocesa, talvez não imaginasse que seu blog NeverSeconds pudesse ter o impacto que teve. Seu pai, David, sugeriu que ela criasse o site porque a garota desejava escrever todos os dias. Quando teve de decidir sobre o que falaria diariamente, ela achou uma boa ideia retratar o almoço da escola. Inventou um sistema de notas para a comida, colocou uma câmera na mochila e, com autorização da escola, inaugurou sua aventura gastronômica.
Os posts de Martha acabaram revelando mais do que sua vontade de ser jornalista. O pai começou a entender por que a filha sempre chegava em casa faminta: as refeições eram ralas, com muita "porcaria" e poucos legumes. O sistema de avaliação incluía um tópico chamado "presença de fios de cabelo". Quando foi checar com Martha se ela não estava exagerando, David se surpreendeu ao saber que aquilo era comum.
Não demorou e o NeverSeconds começou a circular pelo mundo. Por meio das redes sociais, as pessoas começaram a espalhar o blog - e a apoiar Martha. A repercussão foi tamanha que a mídia tradicional procurou os Paynes para saber mais sobre a jovem tímida que avaliava as (pobres) refeições napequena Argyl, na Escócia.
Estava claro que as refeições servidas na escola estavam muito longe de serem saudáveis ou suficientes. Sem querer, Martha expôs um problema que estava longe dos olhos de todos ao colocá-lo na internet. A reação das autoridades locais não foi boa. Apesar de a escola ter dado permissão a Martha, o Conselho de Argyl e Bute (uma espécie de prefeitura local), proibiu a menina de continuar a publicar fotos de suas refeições.
A revolta se espalhou pela internet. Em vez de louvar a iniciativa, os políticos reagiram com proibição. "As crianças sempre tiveram opiniões e falaram sobre elas, mas, quando seu público se torna global e elas escrevem sobre o que é constrangedor para o governo, eles entram em pânico e tomam más decisões, como tentar silenciar Martha", diz o pai da garota.
A estratégia teve efeito inverso. Silenciada, Martha ganhou mais visibilidade e apoio por todo o mundo. O chef-celebridade Jamie Oliver, que milita em prol da melhoria das refeições escolares, apoiou o NeverSeconds e cobrou publicamente uma retratação das autoridades. "Fique firme", disse Oliver pelo Twitter. Antes restrito ao Reino Unido, o caso ganhou repercussão mundial. Revistas e jornais do mundo todo noticiaram a história da menina que foi censurada porque dava notas ao seu almoço.
Diários brasileiros
A ferramenta escolhida por Isadora Faber, 12, foi o Facebook. E seus relatos e fotos iam além do almoço. Isadora pintou um retrato geral da Escola Maria Tomázia Coelho, em Florianópolis (SC). Na página Diário de Classe, criada em julho de 2012, ela coloca fotos de bebedouros e bancos quebrados e banheiros que não funcionam.
A história teve um percurso parecido com a de Martha Payne. O Diário de Classe começou pequeno e, na medida em que ganhou repercussão nacional, Isadora viu sua página chegar a mais de 500 mil seguidores. Jornais, sites e televisões do país todo mostraram o caso da garota que cobrava das autoridades melhorias em sua escola. Martha foi, de fato, a inspiração: "Estava conversando sobre os problemas da escola com minha irmã mais velha e ela me mostrou o blog da Martha. Ela tinha visto em uma reportagem".
Apesar de não ter sofrido a mesma proibição da colega britânica, Isadora teve de enfrentar protestos de pais e professores insatisfeitos. Em novembro passado, a casa onde mora com a família foi apedrejada. A jovem catarinense se inspirou em Martha Payne, mas também serviu de inspiração. Depois de ler reportagens sobre o Diário de Classe, a médica Luisa Portugal, 25, decidiu que era hora de mostrar a todos o que se passava no posto de saúde onde ela trabalhava, em Goiânia (GO). "Quando deparei com as dificuldades estruturais, a falta de profissionais, a falta de orientação à população, tive vontade de fazer alguma coisa", conta ela. Ativado em outubro de 2012, o Diário de um Posto de Saúde cobrava não só melhorias estruturais, como o conserto do ar-condicionado, mas também o pagamento aos médicos do local.
Transparência que muda
Os diários das três jovens chamaram a atenção da mídia e dos internautas, mas não só isso. Conseguiram impulsionar mudanças concretas que talvez não acontecessem caso as páginas não tivessem dado visibilidade aos problemas.As refeições melhoraram na escola de Martha Payne, consertos foram feitosna de Isadora Faber e Luisa Portugal até recebeu elogios das autoridades locais, que não se incomodaram com sua página.
Essa é uma grande novidade. Para Ronaldo Lemos, fundador e diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), "a tendência é que a rede seja cada vez mais usada para dar transparência e visibilidade a questões de interesse público. E com isso aperfeiçoar os serviços". David Payne, pai de Martha, diz que as coisas eram diferentes quando ele era criança: "Eu tinha opiniões, mas não tinha como compartilhá-las. A internet fez do mundo um lugar mais justo para as crianças, porque agora elas podem vocalizar o que pensam".
A possibilidade está aberta não só para as crianças, é claro. Mas parece que elas é que têm feito melhor proveito dessa abertura. "A reação natural de um garoto ou garota que cresceu com a internet é usar a rede para dar visibilidade a problemas que não deveriam estar acontecendo", diz Lemos. "Ao expor situações de precariedade, isso chama o poder público a ser responsabilizado, e o incentiva a cumprir suas funções como esperado."
Mas é preciso ter consciência de que essas são apenas ferramentas. O essencial está nas pessoas, não no meio que utilizam. Clay Skirky diz que "a tecnologia possibilita esses comportamentos, mas não pode causá-los". Da mesma opinião partilha Lemos: "Denunciar e cobrar é só o primeiro passo, a reação instintiva na rede. Às vezes isso funciona, outras vezes não. Por isso, a questão é pensar nos passos seguintes".
É importante a vontade de que as coisas mudem e disposição para mostrar os problemas. E isso não se faz da noite para o dia. Martha Payne, que indiretamente inspirou Isadora e Luiza, dá uma pista de como podemos começar a ter mudanças mais significativas: "Nós sempre fazemos as refeições juntos e conversamos muito. Se algo me incomoda, sei que posso falar. Se acho que algo é injusto ou errado, explico para todos da minha família e eles podem concordar ou não".
Cada vez temos mais possibilidades de mostrar o que está errado com nossos bairros e escolas. A questão é saber se estamos preparados para discutir, concordar e discordar.
Fonte: Diogo Antônio Rodriguez para Vida Simples.
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