O corpo fala. Mas poucos o escutam. Fora dos limites da dor e do prazer, tudo que se refere ao corpo parece padecer de um silêncio constrangido e disciplinado. Quase todas as sociedades na história trataram de estabelecer práticas e técnicas de ocultamento do corpo real em nome de um corpo desejado.
Há momentos "autorizados" para que o corpo se expresse e outros que parecem ser fruto de uma norma de silenciamento. Expressar o corpo fora das situações permitidas pela cultura é considerado exibicionismo, transgressão, descumprimento de laços que garantem o bom funcionamento da sociedade.
Nessa história, até algumas décadas atrás, o corpo era o lugar da repressão. Era sobre o corpo que incidiam todas regras da cultura, quase sempre apontando para um adiamento da satisfação de seus desejos. Educar era reprimir.
No entanto, na sociedade dita pós-moderna, parece que a regra se inverteu e o corpo passou a ser o lugar do prazer obrigatório, da recompensa imediata aos que se submetem aos desígnios do consumo, da necessidade imediata de gozar, da felicidade traduzida em sensações e objetos.
Sai o tempo do adiamento do prazer e entra em cena o momento da obrigatoriedade. Nos dois casos, o corpo é percebido como um objeto, como algo que é diferente do eu, algo que está do lado de fora. As pessoas se relacionam com seus corpos como se tratasse de algo diferente delas, uma matéria que pode ser moldada, transformada, usufruída.
A situação atual nas sociedades do consumo não está tão distante assim do momento anterior do puritanismo moralista. Mesmo aparentemente contraditórias, a repressão e a liberação, quando são frutos de uma obrigação social, padecem do mesmo desvio e esquecimento da dimensão interior.
O culto ao corpo sarado, definido, atraente segundo padrões inalcançáveis da estética contemporânea, exige tanta dedicação quanto a disciplina que tomava conta dos corpos reprimidos. Nos dois casos, a pessoa precisa seguir regras que são ditadas de fora, com potencial de exclusão e julgamento, sem qualquer relação com a interioridade do sujeito.
Essa objetivação do corpo não se relaciona apenas com a estética e auto-imagem, mas também com toda a série de disciplinas, saberes, ciências e reflexões que têm o corpo como centro de interesse. A medicina, por exemplo, se transforma numa prática de retificação de “erros”, em vez de diálogo com aquilo que o corpo expressa. Muitas práticas físicas passam a trabalhar com um ideal de corpo que se constrói, que se adequa a padrões, que são estampados em imagens repetidas e sem identidade. De uns tempos para cá, todos parecem iguais e podem ser descritos a partir de determinados itens que compõem o físico moldado por especialistas.
O Yoga não pode fugir a essa questão, até mesmo porque vem sendo, de forma indevida, tomado como uma técnica a mais nesse jogo. Sem fugir de sua localização no tempo e de seus compromissos com o presente, o Yoga precisa mostrar, por meio de uma dimensão mais universal, o que entende por corpo em sua tarefa de conduzir as pessoas à libertação. Talvez o mais fundamental seja, em primeiro lugar, marcar a indivisibilidade do ser. Como afirma Graf Dürkheim: “Quando você toca alguém, nunca toca só um corpo”.
A dimensão da unidade do ser se expressa também como um princípio da sacralidade da dimensão corporal. Jean-Yves Leloup alerta que a proximidade do outro, por meio do toque, remete a um compartilhamento de memórias poderosas de toda a existência da pessoa. A nossa história se expressa através do nosso corpo: “Quando você toca um corpo, lembre-se de que você toca um Sopro, que este Sopro é o sopro de uma pessoa com seus entraves e dificuldades e, também, é o grande Sopro do universo.
Assim, quando você toca um corpo, lembre-se de você toca um Templo”. A ideia de que o corpo é o templo da divindade surgiu com os adeptos do Tantra, se contrapondo à noção de que o corpo é um mero acúmulo de vísceras. O Hatha Yoga nos lembra que somos a plenitude, a paz, nos recorda da nossa realeza. O que há de fundamental nessa revelação é o fato de que objetivos tão superiores se apresentem exatamente no momento em que as pessoas descobrem o sentido de sua corporeidade. O corpo não é um mero instrumento para elevação espiritual, ele carrega em si toda a divindade do homem.
Patañjali começa a nos ensinar como alcançar a iluminação dizendo: “Agora, o ensinamento do Yoga.” O Yoga está aqui. E o que está mais presente é exatamente o corpo. A prática do Hatha Yoga nos convida, inicialmente, a conectarmos com o nosso corpo físico pela execução das posturas (ásanas), e a nos relacionarmos intimamente com as memórias e lembranças de tudo que vivemos.
Percebemos as nossas dores, desconfortos, as nossas doenças e também nossa força e flexibilidade. Descobrimos partes do nosso corpo que nos são muito familiares e outras que nos são desconhecidas.
Nessa senda de autoconhecimento, vamos então aquietando o nosso corpo. Naturalmente nossa atenção se volta para a respiração. O caminho nos leva a técnicas que nos ensinam a respirar melhor, de forma lenta e tranquila. Ao se voltar para a dimensão interior, nos tornamos capazes de identificar os pensamentos e sentimentos que nos habitam e, a partir dessa descoberta, a refletir acerca de nossas ações e escolhas.
De acordo com Iyengar, a saúde começa com a firmeza do corpo, aprofunda-se até a estabilidade emocional, conduz à clareza intelectual, à sabedoria e, finalmente, ao desvelar da Alma. O corpo físico não está separado da mente e da alma. A prática ensina a viver plenamente, tanto física quanto espiritualmente.
Na verdade, no âmbito da espiritualidade da Índia, não há sentido nessa separação. Ao evitar a oposição entre o corpo e espírito, é possível compreender de que forma as duas dimensões se relacionam: a respiração prepara a disciplina mental e a prática é o caminho de libertação do espírito.
Recorrendo à obra na qual o significado da palavra Yoga como disciplina aparece pela primeira vez, Taittiriya Upanisad (II milênio a.C.), aprendemos que o ser humano está constituído por três corpos superpostos bem diferenciados e que interagem constantemente: o corpo físico (carne e osso, tecidos, células, moléculas e átomos), o corpo sutil (energia, pensamento e conhecimento) e o corpo causal (alma individual e a sua natureza plenitude).
Diferentemente das religiões judaico-cristãs, no campo da espiritualidade asiática o corpo não é empecilho para a realização humana e um obstáculo para a conquista da espiritualidade. O corpo físico não é a sede de pecados e descaminhos, terreno de doenças e dores, lar de vícios e desejos, mas via de acesso privilegiada para a realização de uma vida plena e virtuosa.
A prática, desta forma, é uma pedagogia da descoberta do próprio corpo. Numa atitude de atenção e entrega, é possível escutar a voz do corpo e suas sábias lições. O mesmo corpo que é templo, sopro e libertação, é também sede de dores, de incômodos e de limitações, que expressam uma voz importante na história das nossas buscas.
O passado vive em meu corpo, o presente é sua manifestação. Se não transcendermos as limitações do nosso corpo, como atingir a liberdade suprema, que é o objetivo do Yoga? Com a prática é possível entrar em sintonia com a dimensão interior, com os pensamentos e as emoções. O Yoga nos leva de volta para casa. E é, ao mesmo tempo, o caminho dessa jornada.
Fonte: Cibele Malafaia para Yoga.pro
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