O chuveiro enguiça, o trânsito não anda, você é transferido pela décima vez na ligação para a operadora de celular. Nada dá certo. Parece que você alcançou o chão com o pé esquerdo. Ou que o universo está conspirando contra você.
Não se trata, porém, de perseguição cósmica. O que transforma um dia normal em um péssimo envolve variáveis bem mais complexas. De medidas que deveriam ter sido tomadas há tempos (como o portão que dava sinais de que iria enguiçar) até uma baita intempérie - afinal, uma chuva torrencial sempre pode piorar as coisas.
Os matemáticos da probabilidade ainda não tentaram calcular quantos dos 365 dias do ano são desses que a gente gostaria de riscar da agenda. (Se vale um registro pessoal, chego a ter até dois desses apocalipses individuais por mês.) Mas, como cientistas também não desenvolveram um acelerador instantâneo de tempo, não há saída a não ser enfrentar essas horas - nem que seja se trancando no quarto. Na impossibilidade dessa opção, é impositivo vestir-se, respirar fundo e enfrentar o leão - aquele que metaforicamente dizem que devemos matar todo dia.
Para ajudá-lo nessa empreitada, fizemos um guia com técnicas efetivas e curiosas (muitas com comprovação científica) para tornar a tarefa, se não mais divertida, menos traumática. O resultado ao fim do dia vai muito mais da forma com que você lida com a raiva gerada por esses acontecimentos pontuais do que, efetivamente, de uma vã tentativa de evitá-los a qualquer custo. Até porque eles invariavelmente virão lhe bater à porta para cobrar a conta depois.
Parte I - Desarme sua raiva
Desplugue-se das redes sociais
Num dia em que seu humor não está pra peixe, cair na rede para ver o Facebook ou espiar o Instagram pode tornar sua existência muito pior. Porque você vai ter que encarar aquelas frases otimistas atribuídas erroneamente ao Fernando Pessoa que, independentemente do conteúdo - e justamente por causa dele, às vezes -, já aumenta nossa raiva e descrença na sociedade. Ver fotos de comidas deliciosas, de paisagens deslumbrantes ou de banhos de mar alheios também pode aguçar uma ponta de inveja demolidora, segundo um estudo da Universidade de Edimburgo, na Escócia. De acordo com a pesquisa, as redes sociais incentivam um lado competitivo que aumenta nossos níveis de estresse e a sensação de inferioridade. Melhor optar por um livro e ficar com o Pessoa original: "Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... / Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, / E assim será possível; mas hoje não..."
Dê uma banana para o trânsito
Enfrentar o trânsito já é um desafio à paciência. Imagine, então, estar preso no bólido e ouvir o estômago rugir. "Estômago vazio pode ser decisivo para aumentar nosso mau humor", afirma a monja budista Coen Sensei. A fome faz com que os níveis de serotonina (um dos neurotransmissores responsáveis pela sensação de alegria) flutuem, dificultando a comunicação entre as amídalas e o córtex pré-frontal, gerando raiva. "Leve sempre uma garrafa d¿água ou algo para comer. É seu kit de sobrevivência ao tráfego", orienta ela. Se tiver uma fruta ou um legume, tanto melhor, segundo estudo da Universidade de Otago, na Nova Zelândia. "Em dias de maior consumo de frutas e vegetais, [os alunos participantes da pesquisa] relatavam mais calma, felicidade e energia que o normal", escreveu a pesquisadora do estudo, Tamlin Conner, no British Journal of Health Psychology.
Faça xixi antes de cantar
Outra dica de ouro da monja Coen (que é mais ou menos uma variação do mesmo tema) é fazer xixi antes de sair de casa. Ir ao banheiro sempre e antecipadamente permite que você enfrente o trânsito cheio de bexiga vazia, o que, por si só, já é um conforto extra. Outra saída interessante apontada pela monja para desviar a atenção dos carros é cantar a plenos pulmões. Em uma cena do filme Tratamento de Choque, o personagem de Jack Nicholson, terapeuta especializado em raiva, obriga seu paciente (Adam Sandler) a frear em plena ponte do Brooklyn para se libertar de um acesso de ira cantando "I Feel Pretty", tema de Amor Sublime Amor. Encerrada a canção, o paciente recobra a sanidade como que por mágica. "Cantar exige que a gente use amplamente o aparelho respiratório, expirando mais, relaxando de vez o corpo e jorrando tudo para fora", diz ela. Desde que, claro, você não tenha se esquecido da dica anterior.
Parte II - Lide com ela
(Não) leve para o pessoal
Quando a raiva já está instaurada, a primeira regra é nunca expressá-la contra os outros. Isso poderia se voltar contra você. Como diz um provérbio tibetano: "Usar a raiva para resolver um problema é como pegar um carvão em brasa para jogar na outra pessoa". Um exemplo é ligar para o telemarketing. Os atendentes passam por treinamentos a fim de não levar nada para o pessoal e dispensar indiferença à nossa raiva. Por isso sempre inventam nomes para si mesmos ao nos atender - o porquê de serem sempre compostos é algo que nós não conseguimos apurar. Toda vez que você aumenta o tom de voz, a Sandra Cristina pesa levemente o dedo indicador sobre o botão de mudo e você grita sozinho. A reportagem falou com dois atendentes que confessaram facilitar as coisas para quem age com simpatia. Portanto, quando o chá de telefone é inevitável, o melhor é fazer amizade com a Sandra Cristina e deixar o carvão em brasa no lugar.
Mude a perspectiva
Você está no maior shopping da cidade, esperando para estacionar. Quando finalmente alguém sai e você dá seta, avisando que vai entrar, um cara acelera mais rápido e pega a vaga. Para piorar, quando você buzina, ele te manda praquele lugar. Você: a) desce e briga com ele; b) bate no carro dele; c) risca toda sua lataria. A resposta certa, segundo Leonard Scheff, especialista em lidar com a raiva e autor do livro A Vaca no Estacionamento, seria "nenhuma das alternativas". Ele sugere um exercício de obliteração: imagine a mesma cena mas, no lugar do carro, é uma vaca que invade a vaga. Você provavelmente daria risada. E partiria para achar outra vaga. "A raiva aflora numa parte do cérebro chamada amídala, que age rápido demais e joga para escanteio toda nossa capacidade racional", diz ele. Recolocar o raciocínio em campo é a melhor forma de não ter que ficar depois ruminando o comportamento irado.
Afague seu cachorro
A raiva, para Leonard Scheff, causa uma reação em cadeia. Alguém que foi alvo da ira de outra pessoa normalmente não a releva; ela segue adiante com o comportamento raivoso. Por isso, Scheff diz que é imperativo romper o ciclo. Uma das melhores formas é afagar seu animal de estimação, abraçar alguém ou então ter relações sexuais. Esses comportamentos ajudam na liberação da ocitocina, uma substância química presente no cérebro que nos torna mais amáveis, calmos; fofos, enfim. O hormônio do afeto, como é chamado, é produzido na amídala e regula nossos comportamentos sociais, como os de união e confiança, bloqueando a formação da raiva. Cientistas chegaram a criar sprays de ocitocina que, espirrados no nariz, podem diminuir o cortisol (que causa estresse) e, assim, ajudar a encerrar discussões acaloradas. Mas nem é preciso tanto: afagar um gato ou ver fotos de bebês tem o mesmo efeito.
Parte III - Apele
Clame a Deus por seu inimigo
Estudos comprovam que orar pode ajudar a diminuir a raiva das pessoas. Quando estiver por tempo demais na fila do supermercado e a atendente disser, com sarcasmo, que o caixa fechou, não resgate na memória a imagem do Michael Douglas, em Um Dia de Fúria, com um taco de beisebol na mão. Levante as mãos aos céus e clame. Pesquisadores da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, revelaram que pessoas que foram interceptadas por comentários ofensivos e irônicos mostravam menos raiva assim que oravam pela pessoa provocadora. Os benefícios da oração, segundo o estudo, não dependem de intervenção divina e provavelmente acontecem porque o ato de orar altera a maneira de enfrentar a situação negativa. E para isso você não precisa ser exatamente um religioso. Como diz a música do caipira pira pora, "como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar..."
Durma profundamente
Se nada adiantar, durma. Quando está cansado, você fica impedido de processar as situações com lógica. Um cochilo de 90 minutos (com um ciclo inteiro de sono) basta para restabelecer a capacidade de raciocínio e garantir o fim do acesso de raiva, que costuma durar uns 15 minutos. A psicoterapeuta americana Judith Viorst escreveu um livro infantil (não publicado aqui) com a história do menino Alexander, que acorda no pior dia da vida dele. Para fugir de tudo aquilo - um chiclete que gruda em seu cabelo, a carona para a escola sentado justamente no banco do meio -, ele deseja ir para a Austrália. "Os dias ruins acontecem a todos nós. Até na Austrália, como conclui Alexander", diz Judith. A melhor coisa sobre um dia ruim, segundo ela, é que ele é só um dia, com 24 horas. "Quando outro dia recomeça, as possibilidades também recomeçam." Mas, só para garantir, tente levantar com o pé direito dessa vez, ok?
FONTE: Revista Vida Simples
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