Pai e filho, Ocidente e Oriente.
Quando eu era menino, queria que meu pai fosse bombeiro ou que tivesse uma profissão semelhante, na qual que ajudasse as pessoas que sofriam, ou as salvasse da morte. Dentre outros desejos, também queria me chamar Spiderman e ter nascido na Suíça, para comer chocolate o dia inteiro.
Quando meu pai tentava me explicar que era professor de filosofia, eu não entendia muito bem o propósito da sua ocupação. Muito tempo depois vim compreender que ele ajudava as pessoas, de outra forma e que, mesmo se não salvasse vidas num incêndio, estava dando a essas vidas uma coisa muito importante: significado.
Desde cedo, o professor Juan Kupfer sempre foi um exemplo para mim e às vezes me pergunto até onde a minha opção de me dedicar ao Yoga e ao autoconhecimento foi determinada por influência dele e de seu exemplo de vida, já que ele é o tipo de pessoa que fala o que faz e faz o que fala, demonstrando muita coerência entre pensamento, palavra e ação.
Desde pequeno, mas sem muito interesse, convivi com sua imensa biblioteca de clássicos da filosofia ocidental, que crescia lentamente à medida que o tempo passava. Quando eu era criança e aprendi a ler, passava horas tentando decifrar os complicados nomes dos filósofos e seus sistemas de pensamento, nas lombadas desses livros, muitos dos quais estavam em alemão. Palavras como metafísica, epistemologia e semiótica faziam parte do meu universo infantil, embora eu não compreendesse na época o que elas significavam.
O tempo passou e, depois das tormentas naturais da minha adolescência, nos reencontramos, “filosóficamente” falando, a partir dos lugares onde nos estabelecemos respectivamente: ele, desde a filosofia ocidental e seus muitos autores, que conhece em profundidade; eu, desde o Yoga e a visão visão védica. Apesar da distância física que hoje em dia nos separa, mantemos uma relação na qual ambos crescemos, através de um diálogo sobre as questões que encontramos em comum dentros dos nossos respectivos campos de estudo.
Pontos de encontro.
Cabe lembrar neste ponto que o meu pai não é um teórico, que separe a reflexão filosófica da sua aplicação prática. É um privilégio, reconheço, ter um pai assim, pois além de ser um interessantíssimo e preparado interlocutor, nossos encontros pessoais e comunicação, sejam por telefone ou email, são pontuados pelas agradáveis descobertas do chão comum que encontramos entre as visões do Ocidente e a Índia em termos do que significa uma vida pontuada por valores universais.
Ha paralelismos insuspeitados e surpreendentes entre a visão do dharma e a de alguns filósofos ocidentais, como é o caso de Immanuel Kant, segundo ele me ensinou numa recente conversa que mantivemos, um pouco por telefone e um pouco por email.
Immanuel Kant foi um dos filósofos mais importantes da Alemanha no século XVIII e, não à toa, é um dos favoritos do professor Kupfer, já que ele é uma força inspiradora para uma vida significativa e plena, bem como um gigante ético dentre o panorama dos filósofos do Ocidente.
Para compreender quem é Kant, é preciso conhecer suas intenções como filósofo. O que almejou com seu trabalho? Segundo Raymond Vancourt, autor de um ensaio sobre este autor, “Ele pretendeu salvar a metafísica tradicional, isto é, uma disciplina que tenta estabelecer por meio da razão a existência de Deus, a libertade e a imortalidade da alma, e responder assim às perguntas, fundamentais para o homem: que posso eu saber? Que devo fazer? O que se pode esperar?”. Kant, p. 17.
O esforço de Kant foi no sentido de tentar elevar a metafísica à estatura de ciência exata, para que esta disciplina pudesse ficar à par das matemáticas e da física em termos de eficiência na resposta às questões acima postuladas, bem como na aplicação prática dessas respostas.
Esse esforço por livrar o pensamento filosófico de crenças ou dogmas nos lembra da similar tarefa empreendida pelos yogis da Índia antiga, que mantiveram o rigor no método de expor o conhecimento sobre o Ser, para o que apelaram à mais rigorosa análise reflexiva, vichara, desnudada de qualquer inconsistência lógica, crença subjetiva ou axioma religioso.
Todo yogi está familiarizado, nesse sentido, com o estilo lacónico e preciso dos aforismos de Patañjali ou as exposições impecavelmente lógicas de Shankaracharya, que são exemplos desse estilo meridianamente claro de se expor o conhecimento, tão similar ao de Kant. Porém, como veremos a seguir, a similariedade não se reduz apenas à questão do estilo que estes autores usaram.
Quem precisa do dharma?
Qual é o valor do dharma? Qual seu efeito? Por que deveríamos agir dentro desses valores? Kant descobre, através da obra de Rousseau, que existe algo fundamental, motor da boa vontade, que ele chama “o respeito do dever”. Como sabemos, uma das formas de definirmos dharma é justamente através da palavra “dever”.
Nessa esteira, o filósofo propõe usar a metafísica no interesse da vida moral, da liberdade e da razão prática. Kant propõe uma vida na qual o dever em relação ao outro ocupa um lugar central, exatamente como ensina o sanatana dharma, já que o respeito pelos deveres é o que enriquece e dignifica a vida humana.
Essa vida dentro dos valores universais, ensina Rousseau, o inspirador de Kant, não precisa se fundamentar numa metafísica complicada, nem depende de nenhuma outra ciência ou arte (que, por outra parte, não têm a capacidade de nos tornar mais felizes ou plenos), como explica Victor Delbos, em sua obra La Philosophie Pratique de Kant (p. 128): “Afastando a vã sutileza dos argumentos filosóficos, pretendendo consultar apenas a luz interior (ligada à consciência moral), Rousseau atestava a possibilidade de construir, com base em fundamentos indestrutíveis, a metafísica nova, a metafísica da liberdade e da razão prática”.
Essas convicções serão cruciais no pensamento kantiano, e servem como alicerce para todo o sistema proposto por ele. Resumindo, este sistema propõe a força da intenção como motor das ações do homem. Kant confia no juízo prático do ser humano, da mesma maneira que Sócrates o fez dois mil anos antes.
Mas, diferentemente do sofista, que tenta encontrar nas definições do homem do povo o que sejam a justiça ou a ética, por exemplo, ele procura isolar a essência da moral, do dharma, libertando-o de toda mistura empírica, para poder aplicá-lo universalmente, a todas as situações, tempos e lugares. Dessa maneira, sua moral serve como guia para todas as ações humanas, independentemente da situação que cada um de nós estiver vivendo. Isso implica ter meridianamente claras as próprias intenções na hora de agir.
Na mesma esteira, na visão do sanatana dharma, quando sei o que devo fazer, quando conheço meu papel no mundo e na sociedade, fico tranquilo. Quando consigo discernir o certo do errado, e deliberadamente escolher o certo, me fortaleço muito. Quando minhas ações estão alinhadas com o bem comum, fico em paz pois encontro o meu lugar na ordem das coisas. Cabe lembrar que, além do sentido de dever moral, a palavra dharma significa ainda, dentre outras coisas, ordem, ética, filosofia e harmonia.
Imperativos hipotéticos e imperativos categóricos.
Em sua obra, Kant constata que, movendo os indivíduos em direção à ação, há dois tipos de força motivadora: os imperativos hipotéticos e os categóricos. Um exemplo de imperativo hipotético é o seguinte: se eu quiser aprender a surfar devo, a priori, saber nadar, e começar numa praia com ondas de características adequadas, carregando uma prancha que sirva ao propósito de aprender.
Por outro lado, o imperativo categórico não está sujeito a condições como as do exemplo acima. Assim, não se trata de fazer afirmações como “se eu quiser ser bom, devo fazer as ações de tal e qual maneira”, mas de “eu devo fazer isto ou aquilo”, de modo absoluto, não condicionado.
Desde a perspectiva do dharma, isto é interpretado da seguinte maneira: há coisas que fazemos, que sao fruto das nossas próprias acões, sejam estas espontâneas ou deliberadas. As ações espontâneas são aquelas em que nossas decisões estão naturalmente alinhadas com o bem comum, que não ferem o direito nem se opõem às necessidades de outrem.
Ainda há ações que precisam ser deliberadas, pois elas não coincidem com as ações naturais que faríamos. Essas não estão sujeitas a “negociação”, nem são passíveis de omissão. Por momentos, nossa preferência coincide com o que é correto e aquilo que naturalmente rejeitamos coincide com o errado. Em situaçòes como essas não precisamos nem pensar: agimos de maneira espontânea e já estamos dentro do dharma. Mas, a questão não pára por aí.
A força da intenção.
A verdadeira força que determina a qualidade moral das minhas ações é a intenção com que as realizo, ensina Kant. Na mesma esteira, o sanatana dharma afirma que o que determina o fruto não visível das ações é justamente a intenção com a qual as ações são feitas. Esse fruto invisível, chamado em sânscrito adrishtaphalam, é aquele que irá se manifestar no futuro não imediato.
Não obstante, a condição humana perante as possibilidades da ação não é sempre clara. É justamente em situações não-evidentes que precisamos de consciência, para agirmos de maneira deliberada. Na ação deliberada, diz o dharma, não há margem para especulação de nenhum tipo: ela deve ser feita e pronto. Ela coincide, portanto, com o imperativo categórico de Kant acima mencionado.
Porém, esse não é o caso, por exemplo, do comerciante que vende seus produtos pelo valor justo unicamente com o intuito de preservar a clientela, ou o da pessoa que ajuda os demais apenas para obter sua simpatia. Nesse caso, ensina Kant, sendo o motor da ação a própria conveniência, o valor da ação fica bem reduzido, permanecendo apenas dentro da “legalidade”, mas sem estatura ética.
A lei humana apenas propõe que sejam respeitadas certas normas, independentemente das intenções que possamos ter em relação às nossas ações. O homem que age dominado pelos seus impulsos naturais (sejam estes “bons” ou “ruins”), ensina Kant, não se elevou ainda ao plano da moralidade.
A moral kantiana, assim como o dharma, exigem mais do que apenas o respeito formal pela lei: eles solicitam uma mudança de perspectiva na qual a inclinação natural, pautada pelos instintos ou a própria conveniencia pessoal, dêem lugar ao natural “respeito pelo dever”. Noutras palavras, o dever pelo dever em si. O dharma pelo dharma.
Não faça aos demais o que não gostaria que fizessem consigo.
O Hemachandracharya Yogashastra (I:20) define o dharma em termos bem claros e familiares para um ocidental: “Todas as criaturas desse mundo gostam da felicidade e não gostam da infelicidade. Portanto, não devemos fazer aos outros o que não gostaríamos que os outros fizessem conosco”.
Das três formulações do imperativo categórico postuladas por Kant, meu pai me ensinou aquela que é mais próxima do conceito de dharma citado acima: “Aja de tal forma que você possa querer que sua regra de ação se torne lei universal”. Isto significa, obrigatória para si mesmo, bem como para todos los demais seres humanos.
Um corolário desta formulação é que não devo agir de uma forma que eu desaprovaria nos demais. Noutras palavras, não posso nem devo me atribuir direitos especiais de nenhum tipo. Isto aparece de maneira clara na definição de dharma que diz que eu não devo agir de maneira diferente daquela que gostaria de ser tratado.
Meu pai ilustrou isto com um exemplo concreto: digamos que eu seja um estudante de medicina. É lícito, moralmente falando, colar nas minhas provas? Não, pois não posso querer que colar nas provas seja uma regla universal de ação. Não posso querer essa universalização, pois, se vier a precisar um bom médico, irei escolher um que se absteve de aplicar essa regla. Noutras palavras, irei escolher um médico que nao tenha trapaceado, como eu fiz.
Kant e a visão do sanatana dharma têm em comum o fato de que ambos sustentam que as normas (que são claramente) morais, são absolutas, não estando condicionadas ou sendo relativas a algum tempo, circunstância ou lugar determinado. Tampouco essas normas são ou deveriam ser consideradas meras convenções sociais, daquelas que facilitan o bom convívio, como é o exemplo das regras do trânsito.
Temos que lembrar que a violação dessas regras universais terá sérias consequências, como quando o já formado estudante de medicina trapaceiro, comete um erro médico por falta de conhecimento sobre a matéria que supostamente deveria dominar.
Ishvara em Kant e no sanatana dharma.
Outra semelhança que meu pai percebeu entre a filosofia de Kant e a visão védica, para além das implicações práticas da vida moral, é que ambos admitem a existência de algo superior, objetivo, mas que não é uma “pessoa” divina, como propõem as religiões monoteístas, como a judaico-cristã e o islamismo.
Kant ensina que aquilo que se conhece dentro da tradição védica como Ishvara é o “Ser originário”, o “Ser supremo”, e que, “na medida em que tudo lhe está submetido como condicionado, é denominado o Ser dos seres (ens entium)”. Critique de la Raison Pure, p. 419.
No sanatana dharma, este Ser, manifestado na forma de todas as criaturas, é chamado Ishvara. Em poucas palavras, o Todo é a inteligência que mantém a coesão das coisas e os seres vivos, que é intrínseca à criação. A Aitareya Upanishad (IV:5.2), contém um interessante diálogo que define Ishvara nos seguintes termos:
- “Quem é este?”
- “Aquele a quem reverenciamos como o Ser”.
- “Qual é o Ser?”
- “Aquele por quem se vê, ou aquele por quem se ouve, ou por quem se cheira, ou por quem se articula a palavra, ou por quem se diferencia o doce do não doce; aquele que é coração e mente, aquele que é consciência, percepção, discernimento, inteligência, sabedoria, intuição, firmeza, pensamento, atentividade, impulso, memória, concepção, propósito, vida, desejo e impulso”.
A respeito da ilimitação de Ishvara, a Katha Upanishad (II:4.10), afirma: “O que está aqui, está em toda parte; o que não está aqui, não está em parte alguma. Aquele que acredita estar vendo outra coisa vá de morte em morte”. Para além das diferenças no estilo, percebemos que o filósofo alemão intuiu corretamente a presença do Ser, que não tem, evidentemente, as características de uma pessoa, como propõem as religiões, mas que é uma presença ilimitada e induvitavelmente real, manifestada na forma da ordem universal e das leis naturais.
Conclusões.
Este paralelismo entre os valores universais ensinados por Kant na Europa do século XVIII, e os que aprendemos no Yoga, que datam do terceiro milênio a.C., embora surpreendente, nos mostra que esses valores são de fato patrimônio da humanidade, e não de alguma cultura ou civilização determinados. Eles aparecem, cedo ou tarde, em todas as culturas, em todos os tempos e lugares, pois fazem parte daquilo que somos, e surgem justamente para nos ensinar a viver uma vida plena, realizada e feliz. Namaste!
*Este autor gostaria de dedicar o presente texto ao professor Juan Kupfer, inspirador direto destas palavras e ideias, e ao diálogo franco entre os diferentes pontos de vista e escolas de tradição, que permite manter acesa a chama do conhecimento e motivar o impulso pela auto-superação.
Fonte: Pedro Kupfer para Yoga.pro
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